{Monstros, ciborgues e clones: os fantasmas da Pedagogia Crítica}

{“Senhoras e senhores, lamentamos informar que o sujeito da educação já não é mais o mesmo”. Este parece ser o anúncio mais importante da teoria cultural e social recente. O sujeito racional, crítico, consciente, emancipado ou libertado da teoria educacional crítica entrou em crise profunda.

O questionamento do sujeito centrado, unificado e homogêneo da tradição humanista abala as bases mesmas da chamada “pedagogia crítica”. A persistente consigna que tem estado no centro de todas as vertentes dessa pedagogia pode ser sintetizada na fórmula “formar a consciência crítica”. Pode-se variar a fórmula, substituindo o verbo por “produzir”, “educar”, “desenvolver”; o substantivo por “cidadão”, “pessoa”, “homem”, “sujeito”, “indivíduo” e o adjetivo por “consciente”, “reflexivo”, “participante”, “informado”, “integral”, entre tantas outras possibilidades. O pressuposto é, entretanto, sempre o mesmo: que existe algo como um núcleo essencial de subjetividade que pode ser pedagogicamente manipulado para fazer surgir o seu avatar crítico na figura do sujeito que vê a si próprio e à sociedade de forma inquestionavelmente transparente, adquirindo, no processo, a capacidade de contribuir para transformá-la. O sujeito crítico da pedagogia crítica é a réplica perfeita do sociólogo crítico da educação que, de sua posição soberana – livre dos constrangimentos que produzem a turvada compreensão da sociedade que têm os indivíduos comuns –, vê a sociedade como se vê um mecanismo de relógio, tornando-se apto, assim, a consertá-la.

Esta rica e querida fórmula já não nos parece tão tranquila. Poucos acreditam, hoje, numa visão transparente da sociedade, a qual, para começar, supõe uma concepção da sociedade como única e unificada. Além disso, a soberana posição de uma “consciência crítica” baseia-se no pressuposto da existência de uma teoria total da sociedade que se torna insustentável num contexto no qual as metanarrativas de qualquer gênero são olhadas com profunda desconfiança. A realização do sujeito ideal da pedagogia crítica depende, igualmente, da aceitação de uma epistemologia realista pela qual se supõe a existência de um referente último e “objetivo” – “a” sociedade –, acessível apenas a uma ciência crítica da sociedade e, espera-se, ao sujeito plenamente realizado da pedagogia crítica. No quadro da chamada “virada lingüística”, torna-se altamente questionável continuar sustentando que exista uma coisa chamada “a” sociedade.

É, entretanto, ao seu próprio núcleo, à noção de “consciência crítica”, que se dirige o golpe mortal contra a pedagogia crítica. Os questionamentos dirigidos à chamada “filosofia da consciência” que está na origem dessa concepção partem de várias direções da teoria social contemporânea. Basicamente, a chamada “filosofia da consciência” – que atende também pelo nome de “teoria do sujeito” – pressupõe que o indivíduo humano é o centro e a origem do pensamento e da ação, que o ser humano é o soberano senhor de suas reflexões e de seus atos, que seus pensamentos e ações são, fundamentalmente, racionais e conscientes. Trata-se do conhecido “sujeito cartesiano”, assim chamado por ter sido, supostamente, descrito, pela primeira vez, por Descartes. Esse “sujeito” caracteriza-se, assim, por ser centrado, unificado, homogêneo, racional, consciente, reflexivo. Esse “sujeito” tem uma interioridade, um núcleo de subjetividade supostamente pré-social, extralingüístico e a-histórico. Trata-se, enfim, de um sujeito soberano.

É, primeiramente, a Psicanálise, com Freud e, depois, com Lacan, que vai atacar a soberania desse sujeito, ao afirmar que ele não é quem pensa que é, que ele não faz o que pensa que faz. Com a Psicanálise o sujeito cartesiano sofre um primeiro descentramento: ele é deslocado do consciente para o inconsciente, de um núcleo essencial para um processo formativo, do pré-lingüístico e do pré-social para o lingüístico e o social. É com a chamada “teoria pós-estruturalista” e com as perspectivas chamadas de “pós-modernas”, entretanto, que a “teoria do sujeito” vai se tornar claramente insustentável. Com Foucault, o “sujeito” não passa de um efeito das práticas lingüísticas e discursivas que o constroem como tal. Se, para a Psicanálise, o sujeito não é quem ele pensa que é, para Foucault, o sujeito não é nada mais do que aquilo que dele se diz. O “sujeito”, mais do que originário e soberano, é derivado e dependente. O “sujeito” que conhecemos como base e fundamento da ação é, na verdade, um produto da história.

Com Derrida, é o persistente pressuposto do sujeito concebido como presença para si mesmo, em cuja interioridade o próprio mundo existiria também como presença, que vai ser posto à prova. Para Derrida, a concepção de sujeito da metafísica ocidental confunde-se com seu fonocentrismo. Por estarem “colados” ao seu emissor, os sons que produzimos por meio da linguagem oral parecem coincidir com a presença de seus correspondentes significados em alguma suposta interioridade subjetiva. Os “pensamentos” que temos parecem brotar dessa região de plena presença interior do significado, sem qualquer intermediação da linguagem. A linguagem em sua expressão oral aparentemente coincide com o próprio significado em sua plena e pura presença. Em contraste, a escrita, na medida em que pode ser separada de seu emissor, parece ser uma expressão derivada e secundária do significado. Na argumentação de Derrida, entretanto, a linguagem oral não detém, em termos da presença não-mediada do significado, qualquer privilégio relativamente à linguagem escrita. Em síntese, não existe qualquer interioridade, subjetividade ou consciência que secrete, independentemente da sua expressão como traço lingüístico material, a presença do significado. Com Derrida, a subjetividade dissolve-se na textualidade. O “sujeito”, se é que ele existe, não passa de simples inscrição: ele é pura exterioridade. Não há lugar, aqui, para qualquer “teoria do sujeito” ou “filosofia da consciência”.

É com Deleuze e Guattari, entretanto, que o questionamento da “teoria do sujeito” se radicaliza. Em oposição a Foucault e Derrida, que questionam o “sujeito” da “filosofia da consciência” sem se arriscarem a propor nada em troca, Deleuze e Guattari desenvolvem toda uma pragmática da subjetividade na qual desaparecem quaisquer referências a “sujeitos” como entidades ou substâncias concebidos como centros ou origens da ação humana. Para começar, o mundo é concebido como sendo constituído de “máquinas” que se definem não por qualquer caráter essencial mas simplesmente porque produzem: o que interessa são só seus efeitos. Como tal, não há qualquer distinção entre “máquinas” biológicas, humanas, mecânicas, eletrônicas, naturais, sociais, institucionais... As máquinas se caracterizam pelos fluxos que circulam entre elas: certas máquinas emitem fluxos que são “interrompidos” por outras máquinas, as quais, por sua vez, produzem outros fluxos, que são “interrompidos”, etc. Ao conceber o mundo como sendo formado por máquinas, Deleuze e Guattari rejeitam qualquer distinção entre sujeito e objeto, entre cultura e natureza, entre interioridade e exterioridade. Diferentemente da subjetividade da “teoria do sujeito”, as máquinas de Deleuze e Guattari não são caracterizadas pelo que são, mas pelo que fazem. Não há qualquer tentativa, entretanto, de fazer remontar as ações à qualquer suposta origem – justamente o gesto fundador da “teoria do sujeito”. Tal como em Nietzsche, não se deve ir atrás do “fazedor”, mas apenas do “fazer” e do “feito”. Nenhum ponto fixo, nenhuma substância, nenhuma essência, nenhuma origem, nenhum centro. Apenas linhas, fluxos, intensidades, energias, conexões, combinações. Com Deleuze e Guattari, a teorização pós-estruturalista livra-se não apenas do “sujeito”, mas de todo o vocabulário que torna possível falar sobre ele, substituindo-o por uma linguagem completamente nova, constituída de entes e seres que lhe são completamente estranhos: máquinas desejantes, corpos sem órgão, agenciamentos...

Se com Foucault aprendemos que o “sujeito” é um artifício da linguagem, com Deleuze e Guattari aprendemos que o “sujeito” é um artifício – ponto. É precisamente isso que eles querem enfatizar quando substituem a linguagem espiritualista, idealista, transcendentalista de “almas” e “sujeitos” pela linguagem profana, materialista, imanentista de “máquinas” e “corpos sem órgãos”. Mas se a teorização de Deleuze e Guattari aponta, ainda, para seres e processos que nos parecem demasiadamente teóricos e abstratos, a teoria cultural contemporânea vem nos dizendo que pelo menos alguns desses seres e processos já estão entre nós. Para a teoria cultural contemporânea, a “existência” de monstros, ciborgues e autômatos complica, definitivamente, o privilégio tradicionalmente concedido ao ser humano ou, se quisermos, ao “sujeito”, com todas as propriedades que costumam ser descritas no “manual do usuário” que o acompanha (por favor, consulte o seu): essencialidade, consciência, autonomia, liberdade, interioridade. Os fundamentos da “teoria do sujeito” tornam-se ainda mais duvidosos com os desenvolvimentos da chamada engenharia genética, sobretudo, as possibilidades abertas com a manipulação do código genético e da clonagem.

Tal como demonstrado por Donna Haraway, a generalização da simbiose entre máquina e organismo, no mundo contemporâneo, torna cada vez mais difícil reconhecer entre aquilo que é puramente organismo e aquilo que é puramente máquina. Se com Darwin, o homem se tornou ontologicamente indistingüível dos outros seres vivos, a existência “real” de ciborgues torna problemática distinções ontológicas demasiadamente nítidas entre homem e máquina. O privilégio dado à subjetividade humana, com todos os atributos que lhe são anexados, torna-se, no mínimo, duvidoso. Essa confusão de fronteiras é magnificamente ilustrada no filme Blade runner, no qual a trama gira precisamente em torno da dificuldade de se distinguir entre “verdadeiros” seres humanos e “replicantes”. Não é que as máquinas se tornem “humanizadas”, mas o contrário: são os seres humanos que são expostos em toda sua artificialidade.

Mas se os ciborgues, tal como a engenharia genética, expõem a artificialidade da subjetividade humana de forma concreta e material, há uma outra espécie de criatura que expõe, agora no terreno propriamente cultural, a ansiedade que o ser humano tem relativamente ao caráter artificial de sua subjetividade: o monstro da tradição, da literatura e do cinema. No fundo, a questão da subjetividade diz respeito, sobretudo, ao cruzamento de fronteiras: entre o humano e o não-humano, entre cultura e natureza, entre diferentes tipos de subjetividade. O monstro, “pura cultura”, como diz Cohen, em seu ensaio neste livro, expressa nossa preocupação com a diferença, a alteridade e a limiaridade. A “existência” dos monstros é a demonstração de que a subjetividade não é, nunca, aquele lugar seguro e estável que a “teoria do sujeito” nos levou a crer. As “pegadas” do monstro não são a prova de que o monstro existe, mas de que o “sujeito” não existe.

Chegamos, assim, ao presente livro. Seu núcleo é constituído por três capítulos extraídos do livro de James Donald, Sentimental education. Publicado em 1992, foi talvez o primeiro trabalho teórico a colocar em questão, de forma explícita e elaborada, os fundamentos da “teoria do sujeito” no campo educacional. Misturando crítica cultural com filosofia política e psicanálise, Donald recorre, sobretudo, à análise da ficção sobre monstros para chamar a atenção para o caráter problemático da natureza da subjetividade pressuposta na teoria pedagógica – sobretudo na teoria pedagógica crítica. A “pedagogia dos monstros” não desenvolve uma pedagogia dirigida à formação de monstros nem uma pedagogia que utilize os monstros com fins formativos. A “pedagogia dos monstros” recorre aos monstros para mostrar que o processo de formação da subjetividade é muito mais complicado do que nos fazem crer os pressupostos sobre o “sujeito” que constituem o núcleo das teorias pedagógicas – críticas ou não.

Tendo como eixo esses três capítulos de Donald, o presente livro completa-se com duas resenhas sobre o livro original de Donald, Sentimental education: a de Ian Hunter e a de Eva Bahovec. Por explicitarem, mas também por questionarem em alguns pontos os argumentos de Donald, elas nos ajudam a compreender melhor as complicações da questão da subjetividade em educação. Além disso, o livro inclui também um capítulo sobre “teoria dos monstros”, escrito por Jeffrey Jerome Cohen, extraído do livro por ele organizado, Monster theory: reading culture. Embora não discuta nenhuma questão propriamente educacional, ele desenvolve insights que reforçam o argumento implícito de Donald, de que, parodiando Lévi-Strauss, os monstros são bom para pensar. Tal como os ciborgues, eles mostram, como diz Girard, citado no ensaio de Cohen, que a nossa ansiedade não é causada pela diferença, mas pela falta de diferença: entre nós (mas quem somos nós?) e eles – os monstros, as máquinas e os ciborgues} [tomaz tadeu da silva. pedadogia dos monstros. warez b00k].

2 comentários:

Anônimo disse...

Oi, eu cliquei no link para ler o livro Pedagogia dos Monstros, mas leva a uma página do uol que necessita de senha. Teria a possibilidade de baixar o livro de outra forma? Agradeço.
Marcelo
mar7173@gmail.com

Paolo Bruni disse...

olá marcelo
já ñ tenho mais essa conta
retirei o link d post
vou procurar aq e t mando por mail
ok?
[s]