Assim como sistemas de cotas reinventam a idéia e a percepção de raça em sociedades mestiças, há uma discussão na Organização Mundial da Propriedade Intelectual (Ompi) para reinventar o conceito de propriedade intelectual, tornando-o aplicável a conhecimentos e expressões culturais tradicionais. Trata-se da discussão para a elaboração de um tratado internacional para regular globalmente o regime de "propriedade" a ser aplicado sobre os conhecimentos tradicionais.
Essa discussão é vista por uma série de países em desenvolvimento como uma possibilidade de contrabalançar os pesados efeitos uniformizadores impostos pela Organização Mundial do Comércio (OMC) a partir de 1995, com a adoção do chamado Acordo Trips.
Pelo Trips, todos os membros da OMC ficaram obrigados a estabelecer padrões mínimos de proteção à propriedade intelectual, a partir de um modelo único. Países sem qualquer tradição na área, sobretudo na Ásia e na África, viram-se obrigados a adotar repentinamente um sistema com o qual não tinham nenhuma familiaridade anterior.
As preocupações que justificam a realização de um tratado internacional protegendo os conhecimentos tradicionais são louváveis. Elas incluem pelo menos dois aspectos: evitar a concessão de patentes sobre conhecimentos tradicionais para pessoas que não sejam parte das comunidades que os desenvolveram; e evitar a utilização de conhecimentos tradicionais sem o consentimento das comunidades que os originaram e sem o compartilhamento dos benefícios com essas comunidades.
O problema com essas preocupações é que elas têm levado diversos grupos de interesse, tanto em países "desenvolvidos" quanto nos "em desenvolvimento", a convergirem em torno de um sistema de "imitação" da propriedade intelectual tradicional, neste caso, aplicada aos conhecimentos tradicionais.
Imitação
O caso paradigmático que orienta as discussões da Ompi aconteceu com a banda de música eletrônica Deep Forest. Seu álbum de estréia, datado de 92, trazia trechos do canto tradicional chamado "Rorogwela" das Ilhas Salomão. Segundo a tradição, a canção era entoada pelo irmão mais velho de um órfão, pedindo para que a criança menor parasse de chorar, já que os pais haviam morrido e ninguém a ouviria. O trecho foi obtido de gravações feitas pelo etnomusicólogo suíço Hugo Zemp, em projeto da Unesco de 1973, e foi incluído na faixa chamada "Sweet Lullaby" (algo como doce canção de ninar), que se tornou um hit da "ambient music".
O caso gerou uma controvérsia que se arrastou por anos. O Deep Forest foi acusado por Zemp de "usurpação" e "pilhagem" da cultura tradicional das Ilhas Salomão. A resposta da banda foi que, se assim fosse, também [o compositor alemão Johannes] Brahms [1833-1897] deveria ser considerado usurpador, por ter se apropriado de diversas melodias ciganas na sua música.
O caso comove corações e mentes em todo o mundo. O que interessa nele é como denota de maneira precisa a visão que predomina nos principais organismos internacionais quando discutem conhecimentos tradicionais. Trata-se de uma mesma visão: o país rico, em geral ocidentalizado, apropriando-se dos conhecimentos produzidos pela comunidade tradicional, sem pedir autorização ou com ela repartir benefícios. Termos ligados à idéia ocidental de "propriedade" como "usurpação" e "pilhagem" surgem, assim, facilmente na discussão.
Antropofagia
O que importa aqui é notar como esse enfoque é em si uma expressão de unilateralismo, avesso ao pluralismo e à real complexidade existente. Tal visão desconsidera que grande parte das "apropriações" de conhecimentos tradicionais se dá não a partir de países ricos sobre países pobres, mas sim entre duas ou mais comunidades tradicionais ou por parte de comunidades tradicionais sobre países ricos, ação transcultural tão bem elogiada no Manifesto Antropofágico, de Oswald de Andrade. Não custa nada lembrar: "Só interessa o que não é meu. Lei do Homem. Lei do antropófago".
A lógica ocidental do artista rico apropriando-se do conhecimento da comunidade pobre e ganhando dinheiro com ela não pode servir de padrão único para a criação de um tratado para a proteção dos conhecimentos tradicionais, destruindo a possibilidade das diversas "antropofagias", remixagens e apropriações que enriquecem a vida cultural planetária. Vejam-se, por exemplo, os inúmeros casos de trocas/"comércios" de tradições entre os povos indígenas brasileiros, documentados por Manuela Carneiro da Cunha e vários outros antropólogos, resultados de processos complexos que tornam vãs todas as tentativas de se estabelecer com precisão o que é de uma "tribo" ou de outra, ou de se estabelecer as fronteiras culturais entre os vários povos e suas identidades. Ou casos ainda mais distantes do enfoque ocidentalizado que predomina nessa discussão, como o da banda Xplastaz, que tem entre seus integrantes cantores e dançarinos da etnia maasai da Tanzânia. A banda "apropriou-se" da tradição do hip hop norte-americano, criando o fenômeno do hip hop maasai (www.xplastaz.com).
Dificilmente alguma associação representando o hip hop norte-americano conceberia a idéia de processar os maasai pela apropriação de sua cultura e práticas tradicionais. Afinal, sua arte de mixar usando toca-discos é indissociável das condições socioculturais forjadas ao longo de anos dada a presença negra nos Estados Unidos.
O problema estaria então na definição do que vêm a ser "conhecimentos tradicionais".
E nesse sentido, nenhuma das definições de trabalho adotadas no âmbito da Ompi excluem com clareza o hip hop, ou mesmo a tradição jazzística nos EUA, de sua abrangência. Aliás, a própria definição de conhecimentos tradicionais é possivelmente o tópico mais controverso dentro da Ompi, sendo objeto de infindáveis debates. Nesse sentido, o uso da tradição do jazz feita por Abdullah Ibrahim na África do Sul poderia ser tão grave quanto o uso do canto das Ilhas Salomão feito pelo Deep Forest.
Seria então sócio-econômica a única definição possível para conhecimentos tradicionais? Seria esse um conceito/instrumento forjado para proteger os pobres contra a apropriação feita pelos ricos? O paradoxo é constatar que mesmo que a resposta seja sim, a solução que vem sendo proposta é emular o regime da propriedade intelectual ocidental, forjado em uma Europa novecentista. Regime este que hoje sequer resolve os clamores por acesso ao conhecimento e democratização da informação em todo o mundo. É como se disséssemos que a tradição é importante, mas no fundo, ela só pode ser preservada se tratada como propriedade, como produto, conceitos ocidentais e não-tradicionais...
Entretanto nem toda a discussão sobre conhecimentos tradicionais gira em torno da expansão do regime da propriedade intelectual sobre as culturas tradicionais. Existe um aspecto muito importante, defendido por países como o Brasil e a Índia, que enxerga nos conhecimentos tradicionais uma forma de impedir esse expansionismo.
Trata-se da criação de mecanismos para impedir a "apropriação" dos conhecimentos tradicionais, não estendendo sobre eles o regime da propriedade intelectual, mas sim impedindo que qualquer pessoa se arrogue direitos de propriedade sobre eles.
O principal exemplo diz respeito à criação de uma obrigatoriedade de informação da origem nos casos de pedidos de patente que possam envolver conhecimentos tradicionais. Isso obrigaria qualquer pedido de patente a dizer onde obteve os conhecimentos que levaram à configuração do pedido. Se houver conhecimentos tradicionais envolvidos, a patente não pode ser concedida. Da mesma forma, conhecimentos tradicionais podem servir de base para a anulação de patentes já concedidas, uma vez descoberto o fato de que ou a patente neles se baseou ou o conhecimento tradicional já era estabelecido quando do pedido de patente. Esse outro enfoque para os conhecimentos tradicionais, ao contrário do primeiro, funciona como impeditivo da apropriação e não como veículo de expansão da idéia de propriedade.
Uma das grandes expectativas das comunidades tradicionais com a proteção dos seus conhecimentos por um regime que emule a propriedade intelectual tradicional é quanto à obtenção de vantagens econômicas a partir deles. Isso traz pelo menos dois problemas. O primeiro é que tal expectativa cria uma hierarquia entre os diversos tipos de conhecimento. O risco é que aquele tipo de conhecimento que traz vantagens econômicas seja sobrevalorizado ou artificialmente insuflado pela comunidade, em detrimento de outras práticas irrelevantes economicamente. O segundo problema é que a expectativa de remuneração econômica não passa de uma quimera.
A maioria esmagadora das comunidades tradicionais não irá receber qualquer remuneração significativa por seus conhecimentos tradicionais. Na maioria das vezes, a necessidade de consentimento prévio para divulgação irá sim aumentar o isolacionismo e dificultar que as culturas tradicionais tornem-se sequer conhecidas fora de suas comunidades. Afinal, para quem pedir a autorização? Isso tudo caminha na contramão da construção de uma cultura colaborativa global que pode mostrar-se muito mais eficaz em termos de obtenção de vantagens simbólicas e econômicas. Trata-se do fato de se explorar a natureza "livre" dos conhecimentos tradicionais como sua maior riqueza.
Cultura livre
A cidade de Olinda deu início, em agosto deste ano, a um programa que tem por objetivo propor uma nova política de gestão da cultura. A idéia é documentar e tornar publicamente acessíveis, em regime livre, aspectos da cultura tradicional da cidade.
Dentre outros, a cidade irá documentar seu patrimônio histórico, suas festas populares, incluindo o carnaval de rua, as artes plásticas da cidade, sua música (como o côco-de-roda) e o teatro popular, licenciando o produto desta documentação por meio de licenças "Creative Commons". Essas licenças concedem o direito a qualquer pessoa em todo o mundo de livremente circular, copiar, distribuir e em alguns casos modificar a obra, sem a necessidade de autorização prévia.
Olinda pretende, assim, ocupar os espaços simbólicos globais com sua cultura. E a ferramenta para tanto é a generosidade intelectual, conceito cada vez mais em voga mesmo em meios empresariais, tanto que foi destaque na revista "Business Week" (que não pode ser de maneira nenhuma ser acusada de anticapitalismo) de julho, que a aponta como a mais empolgante nova força motriz de geração de riquezas. E o objetivo é exatamente esse, conteúdo produzido localmente sendo distribuído, copiado e remixado globalmente.
Outras experiências incluem o projeto de cooperação entre o Brasil e África, patrocinado pela Fundação Ford e desenvolvido pela Fundação Getúlio Vargas, que vislumbra a remixagem de música tradicional brasileira por parte dos sul-africanos e vice-versa.
São esses modelos de gestão, que contribuem para um movimento de integração global efetivamente cultural e simbólico, e não só econômico, que são postos em risco com enfoques como esse que prepondera nas discussões da Ompi.
Se a discussão continuar no rumo em que se encontra, é possível que a cantora cingalesa M.I.A. tenha de pedir licença aos funkeiros cariocas para utilizar o seu know-how, como fez em seu recém-lançado disco. A situação se complica ainda mais quando o DJ Marlboro, que sempre sampleou outras músicas para criar seus pancadões, agora se apropria e remixa o remix feito pela M.I.A., criando algo novo. Quem se apropria de quem? As tradições sobrevivem justamente porque são permanentemente reinventadas. Atribuir a elas o status de "propriedade" interrompe esse movimento, isola o que está vivo.
Hermano Vianna e Ronaldo Lemos
A tradição remixada
# 5.9.05
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