Vamos rever a ordem dos eventos que eclodiram no polêmico caso do jogo erótico RapeLay (Illusion Soft, 2006): certo dia no paraíso das compras online - a Amazon.com - foi descoberto o tal jogo que simulava sequências de estupro contra jovens garotas. Foi um “pega pra capá” na imprensa internacional. Estupro, aborto, pedofilia: o jogo tinha todos os elementos para confirmar definitivamente o videogame como fomentador da depravação descabida entre jovens jogadores heterossexuais do sexo masculino mundo a fora. Uma série de manifestações (americanas e inglesas, principalmente) pressionaram o governo japonês e a Amazon, no intuito de banir o jogo das prateleiras. RapeLay despareceu rapidamente do site, e foi perseguido pelo partido conservador/budista Komeito, em terras japonesas.
O caso RapeLay é muito interessante para pensarmos a utilização de determinado tema na agência[1] pornográfica em videogames. O uso do estupro não é novidade nos jogos da desenvolvedora japonesa Illusion Soft. Na franquia Biko, o jogador assume a pele de um maníaco sexual cujo objetivo é coletar itens, no estilo adventure, para, no final do jogo, torturar e estuprar vítimas femininas. Outra franquia que explora o tema é Battle Raper, um jogo de luta em que as adversárias são despidas, peça por peça, e violentadas sexualmente na conclusão dos embates.
Estes jogos foram fartamente distribuídos para fora do Japão, e apesar de conterem agências pornográficas explicitamente pejorativas em relação ao sexo feminino, não repercutiram negativamente como o caso RapeLay. Ou seja, certas acepções do estupro em ambientes interativos, podem não causar tanto asco da opinião pública. É obvio que o problema, neste caso em particular, não é o estupro contra todas as mulheres, mas contra um tipo particular: crianças do sexo feminino. A instância-limite da produção da Illusion Soft só se configurou pela revelação pública da pedofilia, certamente ainda mais nauseante, ao senso comum, por tratar-se de uma agência videolúdica.
Minha questão é: utilizando como ponto de referência a tentativa da Illusion Soft em explorar formas de se “brincar de estupro” (estigmatizadas no neologismo rape+play), seria possível especular outros usos videolúdicos do tema que não culminassem em tabus intransponíveis socialmente?
Inicialmente, como exercício criativo para nossa imaginação pornográfica[2], seria muito difícil elaborar situações interessantes sobre a égide do público alvo da Illusion Soft: a hegemonia do consumidor heterossexual masculino. Talvez essa tenha sido a falácia no processo da desenvolvedora. Ainda mais se tratando de um produto para o mercado pornográfico japonês, onde o tema do estupro feminino é “fofoca de freira”, se comparado ao que existe disponível em termos de gêneros, e subgêneros, relacionados a este tipo de parafilia.
A "prática violenta não-consensual de conjunção carnal" é praticada em inúmeras narrativas pornográficas, sem discriminação de pares, por homens (yaoi), mulheres, transgêneros (futanari) e não-humanos (geralmente representados por tentáculos mutantes ou sobrenaturais). Dentro deste quadro contextual japonês, seria possível direcionar agências pornográficas sobre estupro para os públicos consumidores de todos esses gêneros, sem causar grandes transtornos sociais.
Fora do Japão, entretanto, o consumo de agências videolúdicas do estupro certamente não seriam tão incólumes. O desvio do contexto pornográfico japonês causaria um estranhamento significativo ao tema, pois a “cultura do estupro” não é uma matriz obrigatória na pornografia no resto do mundo. Isso não quer dizer que essa matriz seja, de alguma maneira, melhor ou pior no imaginário pornográfico. O caso RapeLay demonstra somente que devemos buscar outras maneiras de construir o erótico e/ou o pornográfico nos videogames, e não o banimento dessas instâncias das agendas do design de jogos.
[1] “Agência é a capacidade gratificante de realizar ações significativas e sentir os resultados de nossas decisões e escolhas”. MURRAY, Janet. Hamlet no Holodeck: o futuro da narrativa no ciberespaço. São Paulo: Itaú Cultural: Unesp, 2003.
[2] SONTAG, Susan. Styles of Radical Will. New York: Anchor Books, 1991.
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